via mdc . revista de arquitetura e urbanismo de editores mdc em 20/01/09
Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Frederico de Holanda
Há alguns anos Oscar Niemeyer projetou um grande edifício em forma de "pomba" para o gramado central da Esplanada dos Ministérios em Brasília. Danificava um dos principais cartões postais da Capital: as vistas da Esplanada e do Congresso Nacional a partir da Estação Rodoviária de Brasília. Não foi aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No dia 10 de janeiro passado soubemos pela imprensa de um novo projeto para o mesmo local, na altura do Conjunto Cultural da República. O arquiteto fala da necessidade, que toda cidade tem, de uma praça "para provocar o espanto". Praça?! Que praça?! Espanto?! Que espanto?!
Niemeyer já tem lugar garantido entre os maiores arquitetos da história. Seria ocioso assinalar a grande inovação de sua obra na arquitetura moderna brasileira e mundial. Entre os melhores projetos estão os edifícios públicos governamentais de nossa capital. Com os palácios, ele contribuiu para conferir a Brasília o prestígio de que ela desfruta. Contribuiu, essa é a palavra. Pois se fala menos do que se deveria que o projeto da cidade é de Lucio Costa, não seu. No princípio, os edifícios de Niemeyer adequaram-se ao projeto de Lucio Costa, um dos fundadores e maiores ideólogos da arquitetura moderna brasileira. É o caso dos prédios da Praça dos Três Poderes.
Infelizmente não é o caso de edifícios mais recentes de Niemeyer, por exemplo, a sede da Procuradoria Geral da República. Dois cilindros de
45 metros da altura, revestidos de vidro negro, contradizem a "escala bucólica", a área ao redor das "asas" residenciais do Plano Piloto, que deveria ser predominantemente natural e ter edifícios de baixo gabarito. Lucio Costa, em matéria publicada na Folha de São Paulo
(03.12.1996) considerou o projeto "uma brutalidade", acrescentando:
"acho que o Oscar perdeu a noção original da cidade". Niemeyer, segundo a mesma reportagem, não quis discutir: "o problema me parece tão estranho e improcedente que dele me recuso a participar". E teve poder suficiente para fazer valer seu projeto. Lá está construído.
Agora é a vez da "Praça da Soberania". Há dois aspectos a considerar.
O primeiro é quanto à ordenação dos seus elementos: eles definem mesmo uma praça? O segundo, é quanto às relações com a vizinhança.
Não devemos agredir o vernáculo. Há vários tipos de praça, formais ou informais, buliçosas ou solenes, animadas ou tranquilas. Quanto ao desenho, elas também variam: podem ter planta quadrada, retangular, poligonal, circular, elipsóide etc. Entretanto, o senso comum sabe (e há bom senso no senso comum) que qualquer praça é um espaço público aberto definido pelas edificações que o cercam.
Que elementos definem a "praça" proposta? Um edifício em arco, voltado para o Congresso, e um imenso monumento que divide o espaço à frente do arco em dois, ambos sobre um cimentado que ocupa toda a largura do gramado central da Esplanada. O conjunto novamente bloqueia a vista da Esplanada a partir da Plataforma Rodoviária, que Lucio Costa queria desimpedida (ver, de Sylvia Ficher, neste mesmo veículo, "Niemeyer e
Brasília: Criador versus Criatura"). E onde está a praça? Se não houvesse o tal monumento, a "praça" seria uma estranha "praça de um lado só". Com o monumento, nem isso. Ele é um gigantesco plano de concreto armado que divide o espaço à frente do edifício em dois.
Visto da Rodoviária, parecerá muito mais alto que as torres do Congresso Nacional, embora seja da mesma altura. A forma do monumento lembra a das colunas da Igreja Nossa Senhora de Fátima - a Igrejinha - na entrequadra 307-308 Sul, também projeto de Niemeyer, só que… 30 vezes maior! Perde-se a graça e a sutileza do modelo original. As pessoas na "praça" estarão divididas em dois grupos que, na maior parte do espaço, não se veem. O que veem mesmo é o enorme e ofuscante paredão branco do monumento.
E quanto às relações do conjunto com a vizinhança edificada?
Os prédios da Esplanada dos Ministérios têm gabarito máximo de cerca de 30 metros, com exceção das torres gêmeas do Congresso Nacional (o "Anexo 1″), com 100 metros. Estas sobressaem na silhueta da cidade e sua importância foi definida por Lucio Costa nos riscos iniciais da cidade. Ao projetar o edifício do Congresso (as torres, o bloco-plataforma horizontal, as duas conchas), Niemeyer soube magistralmente desenvolver este elemento estrutural da concepção urbanística de Brasília. Aliás, ele o declara seu projeto predileto.
Pela sua volumetria sofisticada e única, e pelo que significa como elemento máximo da democracia representativa, o Congresso Nacional é sabidamente o maior símbolo da Capital e um ícone frequentemente referido, internacionalmente, como símbolo do Brasil. O Congresso, mais o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, definiam, também desde os riscos iniciais de Lucio Costa, a Praça dos Três Poderes. Os três formam um conjunto admirável. A leveza com que tocam o chão, a simplicidade, a transparência, a relação direta que mantêm com a Praça mediante suaves rampas (as malfadadas cercas atuais não existiam), conferem ao logradouro uma solenidade sem arrogância ou sisudez. A Praça dos Três Poderes nos emociona (evito o verbo
"espantar") por sua beleza e originalidade. Ela grava-se indelevelmente em nossa memória. Por que, agora, ela não é mais suficiente? Por que há de se criar um outro espaço para competir com ela, contendo um monumento que, por suas dimensões, enfraquecerá o símbolo maior de Brasília (o Congresso), e modificará não só o espaço da Esplanada dos Ministérios, mas a própria silhueta da cidade pensada por Lucio Costa? Vejam nas imagens da maquete eletrônica publicadas no Correio Braziliense como se tornam nanicos os edifícios da vizinhança, inclusive a Catedral Metropolitana (sintomaticamente, o Congresso não foi incluído nestas imagens…). Niemeyer não danifica somente a imagem da cidade, danifica sua própria arquitetura pregressa.
Talvez Brasília se ressinta da ausência de boas praças informais que o povo frequente rotineiramente, mas isso é outro assunto. Certamente, não precisa de mais um espaço de caráter cívico-monumental (repito, não é uma praça), com funções predominantemente expressivas (pois é para "provocar o espanto"). De espaços expressivos estamos bem servidos. E mediante lugares de excepcional qualidade.
Supondo que os problemas arguidos sejam reais (a necessidade de estacionamento sub-terrâneo, a conexão entre os setores culturais norte e sul etc.), há inúmeras maneiras de solucioná-los sem macular a cidade. Igualmente, se um edifício para guardar a memória dos presidentes da república brasileira mostra-se necessário, também há mil outras formas de fazê-lo. Ou então, que tal utilizar o Panteão da Pátria, que (lamentavelmente) já está construído, e às moscas, para isso?
Talvez os deuses não errem (tenho minhas dúvidas). Os homens - mesmo os geniais - podem errar. Espantosamente.
Frederico de Holanda
Professor Associado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, professor de Projeto de Urbanismo, e doutor em arquitetura pela Universidade de Londres.